O mundo, portanto.
O que nos manuseia.
Convoca: esta é uma outra maneira
de dizê-lo.
Será esse o seu propósito
(chamemos-lhe assim) e a razão
dos seus acasos, necessidades,
dos inacabados engenhos,
das suas discretas insistências
e dos nossos risos
(chamemos-lhes assim) ruidosos por entre
o que há de incumprido nos lugares.
Mas depois disso?
Não adianta alegar inocência.
Já ninguém acredita.
E depois pouco interessa.
Há quem tenha rabiscado
em guardanapos ou lançado
gestos. Assim,
sem mais.
Como se fossem
imprevistos.
Quem tenha feito aperfeiçoado
o crrchtctchhtt
das fitas encravadas
ao lembrar-se. E assim
por diante, sem que andasse assim
tão longe da verdade. Quem tenha furiosamente
esquecido o tempo e o espaço, ou dobrado
um no outro, bem devagar, enquanto
esperava, simplesmente, que passasse
por ali um sopro. Ou seja, que fosse
visto pelos outros igualmente assim
cambaleantes. Que as dores
não amansassem o tempo,
o mundo, e tudo o resto.
Há quem tenha sido exaltadamente
retráctil, como uma mão
na água fria. Quem tenha guardado
uns berlindes num saco de renda,
numa gaveta junto aos bonecos
de dar à corda. Naturalmente.
(Pensem por exemplo
no som que uns e outros)
Há quem tenha chegado um pouco tarde
porque parou, muito parado um bom bocado,
para desentorpecer o andar. Uma espécie
de esgravatar da rotina
por uma desordem, quase sossegada.
Uma desordem quase, uma desordem quase.
Há quem tenha feito uma ideia súbita durar
anos, usando-a ferozmente, só de vez em quando.
Quem tenha lido tão espantadamente
os voos e as vísceras desgovernadas do banal.
Há quem tenha deixado de vez
de anunciar cortes
nos paradigmas e emprestado a faca
a criaturas mais soltas.
Quem se tenha deixado ficar
muito aconchegado para ouvir melhor
e praticar o ranger de dentes.
Quem tenha de tanto andar digamos
por aí roubado a arquitectura aos arquitectos.
Quem tenha demorado uma vida a chegar
às ditas grandes questões. E as tenha desfeito
às três pancadas (e não uma de cada vez).
Quem tenha trazido as palavras de volta
ao esforço. Quem tenha passado muito
tempo em zonas em que a lei é omissa.
Quem tenha perguntado muito rindo
de como encolhem os ombros
os que choram. Pois não há resposta.
Quem tenha sido obstinado na hesitação,
mas porque acreditava como ninguém
nas virtudes do mergulho incalculado.
Há quem não tenha esperado nunca
por nada senão talvez um certo dia
pelo fim de tudo e por isso tenha andado
tão entregue a princípios. E andado tanto,
entretanto (o que não impede o exercício
por exemplo da cartografia mas atrapalha
as competências um pouco mais lentas da lupa).
Quem tenha portanto ido e vindo
e nisso visto um pouco o mundo.
Há quem tenha achado que era pouco, isso.
Quem tenha desencadeado. Isso sim,
seja lá como. Quem tenha sido pouco
minucioso a pontapear os inimigos circundantes.
(Ainda assim, tão exacto quanto possível)
Quem tenha feito uma coisa parecida com extinguir-se.
Que tenha espatifado uma coisa parecida consigo próprio.
Quem se tenha encadeado, a olhar para o chão.
Quem nunca tenha clarificado muito bem as suas claridades.
Até quem não as tenha tido, para evitar distracções.
E quem tenha sido objectivamente
impreciso (para lá da óbvia necessidade).
Quem tenha rasurado mais do que escrito.
Há quem tenha prematuramente anunciado
o fim. Nem que fosse de mais um cigarro
(porque mesmo um fim assim, tão fraco
de cinza e assobio e luz que se esboroa
é tão doce como um bom prenúncio).
Há quem tenha dito: talvez quando amanhecer.
Quem tenha apagado a luz e rondado
as explosões de maçãs muito quietas.
Quem tenha vivido sem que se desse por isso.
Quem tenha achado lindo um sábado
em que já não havia nada mesmo nada a fazer.
Quem se tenha agachado a rir.
Quem tenha esfaqueado a pedra
como se tivesse alguma coisa dentro.
Quem tenha dançado tão mal
e tão espantosamente entre cadeiras
num bar, já depois de fechado.
Quem tenha relido tudo, agora mais devagar.
Quem tenha sobretudo rasgado. Ou enfim
dançado. Quem tenha sido tão sossegado,
e no entanto. Quem se tenha divertido a mexer
as mãos em frente a projectores. E no entanto.
Quem tenha acendido o ecrã simplesmente
para ver o pó contorcer-se.
Quem tenha escavado esconderijos
e engendrado evasões.
Quem tenha amplificado os sons
mais murmurados, inventado cartuchos ainda
mais oleados e bandas tão mais magnéticas
para isso. Pigmentos novos, pestanas mais
estremecidas, facas mais aguçadas, vozes
ainda mais roucas, palavras mais impensadas,
morais mais soltas, vidas mais desfeitas,
futuros mais espalhados, amores mais
o que seja que os amores mais ficam.
Ou quem tenha desamado tudo
com uma seriedade louca e entre risos
por acaso auscultado os tais engenhos.
Não é mau, como princípio.
Tudo isto, diga-se, quase sempre com rigor feroz
e subtileza sempre quase rítmica e sôfrega.
Isto interessa-nos.
Tudo isto,
ainda que por outra razões,
ou com outros fins
– ainda incertos.
Daremos outro uso aos instrumentos
Às subtilezas, e aos modos de desabar.
É disso que se trata.
Falta tudo o resto.